sábado, 20 de dezembro de 2008

Acontecimento científico do Ano - Reprogramação de células adultas humanas em células estaminais

À espera do dia em que poderemos reprogramar as células do corpo humano
(foto: Juliana Mattos Coelho / aluna de iniciação científica - Laboratório de Embriologia de Vertebrados/UFRJ)

Este foi o ano em que os cientistas começaram a produzir, directamente a partir de células de doentes adultos, células estaminais que poderão um dia mudar a face da medicina.


Era uma vez uma velhinha de 82 anos que sofria de esclerose lateral amiotrófica, ou ALS, uma terrível doença neurodegenerativa do sistema nervoso central. Aquela mesma doença que deixou, há já uns anos, o célebre físico britânico Stephen Hawking totalmente paralisado e incapaz de falar. Não havia grande coisa a fazer pela doente, pois a ALS não tem hoje nem cura nem tratamento. Mas as suas células, essas, estão a fazer história.
Partindo de uma amostra de pele dela, John Dimos, da Universidade de Harvard, e colegas submeteram algumas das suas células a uma manipulação genética. Mais precisamente, pegaram em fibroblastos - células que fabricam o colagénio e a matriz extracelular, que garante a coesão dos tecidos do corpo - e submeteram-nos a uma reprogramação genética à base de quatro genes, que introduziram nas células a bordo de um vírus.
Quando cultivaram as células reprogramadas, constataram (como já se vinha fazendo há dois anos) que tinham rejuvenescido, por assim dizer. Tinham regressado a um estádio em tudo semelhante ao daquelas células que, nos embriões, são capazes de gerar qualquer tecido do organismo: as célebres células estaminais embrionárias. Contudo, como essas células não são embrionárias, mas apenas semelhantes às embrionárias, têm outro nome: células IPS (pluripotentes estaminais induzidas).

APAGAR A MEMÓRIA

A história das células IPS não começou este ano, mas em 2006, no Japão, quando Shinya Yamanaka e colegas, da Universidade de Quioto, mostraram que, ao inserir quatro genes específicos em células humanas a bordo de um vírus, conseguiam apagar a sua "memória", fazendo regredir o seu desenvolvimento. Mas só este ano é que a técnica começou a dar verdadeiras provas.
O recurso a células IPS tem a grande vantagem de evitar recorrer à clonagem de embriões humanos para aí colher, aos poucos dias de desenvolvimento, as células estaminais embrionárias - evitando assim as questões éticas levantadas por esta técnica, mesmo quando aplicada apenas a fins terapêuticos e não reprodutivos.
Entretanto, a equipa de Yamanaka conseguiu reprogramar as células sem recorrer a vírus (que poderiam surtir efeitos indesejáveis) e sem utilizar um dos genes iniciais, conhecido por ser potencialmente cancerígeno.
Seja como for, a inédita proeza de Dimos e colegas - que levou agora a revista Science, na sua edição de hoje e no seu tradicional top ten dos avanços científicos do ano, a escolher a reprogramação celular como grande vencedor de 2008 - foi o passo seguinte. Os cientistas conseguiram obrigar as ditas células IPS a diferenciar-se. Mas não para tornar a dar os fibroblastos da pele que tinham sido inicialmente. Antes para se transformarem em células do sistema nervoso, e em particular em neurónios motores! Os seus resultados foram publicados em Agosto na Science.

TRATAMENTOS À MEDIDA

Parafraseando o que escreveu na altura um especialista, num comentário aos resultados na mesma revista, isso significa que, se forem ultrapassados os grandes obstáculos técnicos e de segurança e eficácia que ainda travam o transplante deste tipo de células directamente para o doente, deverá ser em princípio possível utilizar neurónios novinhos em folha como estes para tratar e eventualmente curar doenças.
Um tratamento à medida, a partir das próprias células do doente. Claro que este cenário é ainda futurista. Mas, graças aos resultados que foram sendo conhecidos ao longo do ano, ficou sem dúvida mais perto.
Aliás, num artigo publicado em Abril na Proceedings of the National Academy of Sciences, a equipa de Marius Wernig, do MIT, já dava conta do seguinte resultado não menos importante: o transplante, para o cérebro de ratos com doença de Parkinson, de neurónios derivados da pele de ratinhos adultos permitiu reduzir os sintomas da doença nos ratos.
E em Setembro, como que numa confirmação definitiva do potencial da reprogramação celular, a equipa de In-Hyun Park, também de Harvard, revelava na revista Cell que tinha conseguido gerar células IPS a partir de células de doentes afectados por uma dezena de graves doenças genéticas, como a distrofia muscular, a coreia de Huntington, a trissomia 21 ou a diabetes juvenil, entre outras.
"Este tipo de células estaminais específicas de uma doença", escreviam esses investigadores, "fornece uma oportunidade sem precedentes de estudar a formação in vitro de tecidos normais e patológicos, abrindo assim caminho à investigação e ao desenvolvimento de novos medicamentos."
Também em Agosto, ainda outra equipa de Harvard descrevia, na Nature, como tinha conseguido inclusivamente contornar a etapa de regressão das células adultas iniciais para um estádio quase embrionário, transformando células do pâncreas de ratinhos adultos directamente em células capazes de produzir insulina, graças a uma outra combinação específica de genes.


Talvez seja possível um dia transformar qualquer tipo de célula em qualquer outro, bastando para isso conhecer a "chave" genética adequada...
Fonte da notícia: artigo de Ana Gerschenfeld impresso no Público

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